quinta-feira, 4 de junho de 2015

Estudar, Casar e Bolos zás-trás-pás

Quando era criança e havia festas lá em casa, a minha mãe punha-nos sempre, a mim e à minha irmã, a bater as massas dos bolos. 
Parecia um castigo porque o peso da batedeira cansava os nossos bracitos e o tempo necessário parecia-nos uma eternidade. A nossa compensação era ir metendo o dedo na tigela e provando a massa, amiúde. No fim ainda deixávamos uma boa quantidade no fundo da tigela para lamber com o rapa, vulgo "salazar". 
Desconfio que a minha mãe reforçava a quantidade de ingredientes para não acabar com as formas meio vazias...
Tinha algumas, poucas, receitas que fazia sempre. Mousse de Chocolate, Pão-de-Ló, Torta de massa pão-de-ló com recheio de creme chocolate, Colchão da Noiva, Pudim de Laranja e um Pudim de Côco que quando eu era miúda não comia mas que mais tarde, muito mais tarde, descobri que é uma maravilha.
Era raro fazer os pudins porque nem sempre saíam bem, desmanchavam-se muito por isso preferia fazer o tipo de bolos muito simples, muito zás-trás-pás.
Mesmo o Colchão da Noiva que exige mais paciência e jeito para montar e dar o acabamento na cobertura, desde muito cedo me incumbiu de o fazer.
Super responsável, fazia as coisas porque tinham de ser feitas. Muito mais exigente na higiene da casa e das roupas, na cozinha sempre se preocupou mais com a qualidade dos produtos, na forma simples e saudável de os preparar e na abundância e variedade das refeições.
Ainda hoje, se o assunto vem à baila queixa-se de não ter tido oportunidade de estudar mais, das dificuldades económicas e das mentalidades da época e das várias condicionantes adversas que lhe coarctaram as hipóteses de realização pessoal e profissional. Compreendo que não tenha alcançado o seu ideal mas após ter deixado a escola quando fez a 4ª.classe, tanto pediu, tanto insistiu que o meu avô anuiu e aos 16 anos conseguiu num ano, com aulas particulares, preparar-se para o exame do 2º.ano e dois anos depois concluir, sozinha, os exames do antigo 5º.ano dos liceus. Atenção que isto foi em 1957. 
Como as suas piores notas foram nas provas orais de francês e inglês começou a frequentar o Instituto Francês e o Instituto Britânico e aprendeu as duas línguas com uma excelente pronúncia semelhante aos nativos.
Depois casou, como era suposto na época, mas ser uma dona de casa prendada não era de todo o seu estilo.
Assim que nós começámos a ir para o Jardim Escola, tinha eu 5 anos, começou a procurar emprego.



Entre outros, respondeu, conforme se fazia na época, por carta dirigida ao jornal com a referência publicada, a um anúncio que pedia secretária fluente em francês e inglês. Ficou toda contente quando a chamaram para uma entrevista e imediatamente em pânico quando soube que era na Rua António Maria Cardoso, nas instalações da Direcção Geral de Segurança (ex-PIDE). Suficientemente politizada para não querer trabalhar em tal organismo a hipótese de não comparecer ou de recusar o emprego estava fora de causa dado que se tratava da polícia política e correria o risco de se tornar suspeita e perseguida.
Enquanto percorria aqueles corredores labirínticos por onde era encaminhada, enquanto esperava numa sala sozinha com a nítida impressão de estar a ser observada, dominou o medo e decidiu fazer-se de parva, mesmo estúpida, durante toda a entrevista e foi assim que conseguiu não ser seleccionada.
Depois arranjou emprego em firmas idóneas e quando o meu avô J morreu, a avó A foi viver lá para casa exercendo o domínio da cozinha.
Poucos anos mais tarde iniciou, juntamente com o meu pai, uma empresa que foi crescendo com muito trabalho, investimento e dedicação. Mais um motivo para delegar quase todas as tarefas na cozinha.
Não teve a carreira profissional gloriosa com que sempre sonhou mas alcançou outros méritos, tem uma bela família e duas filhas, três netas e um neto e ainda pode vir a ter bisnetos... 
Agora fica rejubilante quando nos consegue reunir a todos lá em casa e prepara carinhosamente os pratos preferidos da sua prole - as mãozinhas de borrego assadas ou o rosbife grelhado no forno acompanhado de abundante molho de natas e cogumelos.
Para não serem sempre os mesmos zás-trás-pás, pede-me sempre para eu fazer e levar os bolos e as sobremesas.

2 comentários:

  1. Não há melhor história que as histórias reais. Que belo relato. Adorei.

    Olga

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    1. Olá Olga
      Tal como te disse no workshop onde nos conhecemos, aqui estão histórias sobretudo de viagens ao passado, episódios da vida real.
      A comida e as pessoas têm uma ligação muito forte e são para mim fontes de inspiração para cozinhar e para escrever.
      As pessoas, não os botões assassinos...
      Ahahahah
      beijinho
      Raquel


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