quarta-feira, 22 de julho de 2015

O dia em que o mar nos ia devorando

Quando estávamos de férias na Ericeira fazíamos muitos passeios para variar dos dias de praia.
Visitávamos as redondezas, o Vimeiro, a Praia das Maças ou o Palácio da Pena que a minha avó A adorava.
Um belo dia fomos às Berlengas.



Saímos de casa bastante cedo em dois carros porque éramos um grupo de nove, dirigimo-nos a Peniche onde apanhámos o barco para visitar a ilha.
Eu tinha 7 anos, a minha irmã 5, a minha prima M e os amigos tinham entre 16 e 19 anos. Os adultos eram os meus pais e a tia G, mãe de M.

Era um lindo dia de verão. O barco estava cheio e nós íamos lá fora no convés. A viagem demorou uma hora, houve quem enjoasse e algumas pessoas deitaram "carga ao mar". Não foi o meu caso, o que até era de estranhar porque nas viagens de automóvel, sentada no banco de trás, ficava sempre agoniada.

A ilha é inóspita contudo passámos um dia maravilhoso. Passeámos a pé pelos trilhos, visitámos o Forte onde existia uma pousada, subimos ao Farol e demos uma volta num barquito com guia que nos levou a visitar as grutas e as rochas que parecem esculturas naturais com formas mais ou menos animalescas.
À tarde, já cansados de tantas caminhadas e querendo desfrutar a praia de águas transparentes e areia clara, decidimos regressar só no último barco.
Já no cais de embarque levantou-se um vento frio que nos obrigou a embrulharmo-nos nas toalhas de praia à falta de melhor agasalho. Quando subimos para o barco toda a gente foi para dentro arrepiada. Felizmente não éramos muitos, talvez metade da lotação.

O clima mudou radicalmente. O céu acinzentou-se e o mar encrespou.
No início da travessia eu ia com o nariz colado à janela espantada com o tamanho das ondas. Ainda tenho bem presente as imagens de quando estávamos na crista da onda a ver o mar lá em baixo como se estivesse no cimo de um prédio de muitos andares e logo a seguir, quando o barco descia a onda, olhar para cima e ver uma parede de água tão alta que quase não via o topo. Curiosa e destemida estava fascinada mas a minha mãe começou a antever os perigos e a desgraça e obrigou-me a ir sentar junto da família, o que me deixou, como de costume, muito contrariada.

As cores escuras do céu e do mar, a ondulação descomunal e a noção da pequenez da embarcação eram de facto, para qualquer adulto consciente, aterradoras.
O meu pai mantinha-se calado, sentado, amparando num abraço uma filha de cada lado. 
A minha mãe numa pilha de nervos não se calava, olhando para os coletes salva-vidas empilhados, perguntou ao mestre da embarcação:
- Há coletes que cheguem para todos? 
- Nem vale a pena pensar nos coletes, se o barco se virar não há salvação! - Exclamou ele - Mas entretanto no porto de Peniche já devem ter percebido a nossa situação e vêm ajudar-nos?! - Indagou cada vez mais ansiosa e em busca de um conforto. 
- Não minha senhora. Estamos por nossa conta. Se o motor não parar vamos lá chegar, agora se houver alguma avaria... - Respondeu ele muito sério abanando fatidicamente a cabeça.
E lá continuámos subindo e descendo na ondulação gigantesca. 
Ninguém entrou em pânico, todos se mantiveram agarrados aos bancos de madeira, tensos e assustados sem vestígios de enjoo ou vómito.
Ora estávamos no topo da onda como a descíamos vertiginosamente batendo no fundo para subir novamente num esforço de motor e de fé. Talvez alguém rezasse por nós.
Eu era demasiado infantil para sentir medo, nem tinha noção do que nos podia acontecer.
Quando nos aproximámos do cabo com terra à vista, a minha mãe exclamou:
- Agora ao passarmos o cabo vai melhorar! 
Mas o mestre, sempre animador, desiludiu-a: 
- Olhe que não! Com o vento nesta direcção e as correntes, vai ser muito pior!

E foi.
Nunca mais o alcançávamos mas já se via o cais, cheio de gente. Curiosos que cada vez que o barco desaparecia atrás de uma onda temiam que se tivesse afundado.
Foi assim num desespero esperançoso que finalmente nos aproximámos, as cordas foram lançadas e naquele turbilhão tempestuoso conseguiram amarrar o barco ao cais.

A minha mãe diz que foi a primeira a saltar para terra firme e ali mesmo jurou que nunca mais na vida entraria num barco e cumpriu a promessa, até hoje.

Enquanto os lívidos passageiros saiam o capitão do porto entrou de rompante, possesso, a descompor o mestre da embarcação, acusando-o de irresponsabilidade total ao sair para o mar com uma tempestade daquelas a aproximar-se.
Até tinha razão mas foi graças à mestria do mestre, experiente homem do mar, que enfrentando e superando cada onda, na posição certa, chegámos a bom porto.
Não fiquei traumatizada, adoro velejar, no entanto nunca mais apanhei uma tempestade assim.

Esta não é uma história com comida mas sim uma história onde íamos sendo devorados pelo mar.

1 comentário:

  1. Há uns tempos voltei às Berlengas e, de tanto ouvir contar essa história, fiz a travessia com os sentidos todos nas ondas. Esse foi o momento alto do passeio. É o mar que emociona. A terra é só um ilhéu de gaivotas.

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